sexta-feira, 27 de novembro de 2009

cronicidades3

O País Calvinbol
por Paulo Castro Seixas

Na turma do meu filho há um daqueles rapazes que coloca os nervos dos professores em franja. Chamemos-lhe Zézinho! Vamos no terceiro mês de aulas, a caderneta do Zézinho já vai cheia, todos os dias vai ‘para a rua’, que é como quem diz é posto fora da sala… Os professores terão tentado tudo para que ele seguisse as regras mas o Zézinho parece inventar sempre uma regra nova… que lhe possibilita não cumprir as regras. No final parece não interessar quantas vezes o Zézinho irrita os professores, quantas chamadas de atenção tem na caderneta, quantas vezes é expulso da sala de aula. Os colegas já entenderam isso, os pais dos colegas já entenderam isso, os professores já entenderam isso… Então, perguntam vocês, e a Escola, ou seja, a instituição que legitima tal (des)regramento? Pois não sei responder-vos. O que eu sei é que, até agora, a Escola não fez nada!

Como todos os dias, falávamos sobre isto no carro… Sobre a possibilidade de alguém numa turma subverter as regras e de toda a turma acabar sendo subjugada nessa subversão. “É como o país” - dizia eu. “É como o Calvinbol” – disse o meu filho. “O quê?” – Perguntei eu. Ele explicou-me e é verdade. De facto a turma do meu filho (e de tantos filhos nossos) está como o país e ambos estão como o Calvinbol! A esta altura já devem estar a perguntar que raio é o calvinbol. Para quem gosta do Calvin e Hobbes, consultem o álbum Progresso Científico… Uma Treta! Mas eu explico.

O Calvin estava com dificuldades em aprender as regras do Basebol e resolveu inventar o seu próprio desporto, o Calvinbol. O Clavinbol é um desporto cuja única regra é nunca repetir a mesma regra duas vezes. Como diz o Hobbes (Waterson, 1991: 101) “Não há desporto menos organizado que o Calvinbol”. O calvinbol é uma espécie de jogo das caçadinhas mas em que nunca se é apanhado porque cada vez que se está para ser apanhado inventa-se uma nova regra ou consegue-se interpretar de novo uma velha regra.

O Zézinho da turma do meu filho está sempre a inventar novas formas para o jogo do ensino-aprendizagem na sala de aula, assim como os políticos, legisladores e tantos mais inventam novas regras ou interpretam de forma nova velhas regras para se desresponsabilizarem e (des)regular o país, ou seja, vão jogando o Calvinbol, segundo a principal regra do jogo: "Nenhum jogo de Calvinbol pode ser igual a outro". Se ainda não perceberam bem o jogo, deixo-vos abaixo a tese apresentada por Bill Waterson. Vejam lá se não é um jogo bem Português?!


cronicidades2

Estado de Excepção
por Paulo Castro Seixas

Há 25 anos atrás, quando tive, na Universidade, Princípios Gerais de Direito, resolvi ‘subir nota’, o que tinha de ser feito numa ‘oral’ (prova oral). Fartei-me de estudar e quando cheguei lá, o Dr. José Leitão (no ISCSP) perguntou-me qual a utilidade do Direito para a Antropologia. Engasguei… a resposta não estava no livro. Lá subi a nota mas nunca fiquei satisfeito. 25 anos depois, folheio a Teoria Geral do Direito Civil de Carlos Mota Pinto. Procuro um capítulo ou subcapítulo sobre Excepções e nada. Refere-se que as nossas leis são gerais-abstractas e não seguem uma formulação casuística… Isto deve continuar a ensinar-se nas Faculdades de Direito mas um capítulo sobre a Teoria Geral da Casuística ou sobre A Teoria Geral da Excepção já fazia falta por estes tempos.

Dr. José Leitão eu propor-me-ia dissertar sobre este capítulo. Assim, de repente, talvez se pudesse propor alguns subcapítulos.

1. A excepção na produção legislativa. Temos aqui uma excepção temporal e uma excepção substancial. No caso da excepção temporal, por um lado as leis são feitas em função (e normalmente logo de seguida) a um caso concreto (tipicamente um político suspeito ou arguido). No entanto, com a evolução do direito, começa-se já a produzir uma espécie de direito preventivo, o que se poderia chamar excepção temporal preventiva, em que se tenta prever os casos concretos e produzir normas que os tornem inviáveis juridicamente. Quanto à excepção substancial, ela relaciona-se com os sujeitos e os objectos da lei.

2.1. A excepção em função do sujeito legal. Aqui teríamos pelo menos duas grandes excepções, ou seja dois ‘sujeitos excepcionais’: os que vão procurando estar acima da Lei e a aqueles que, não se considerando abrangidos pela Lei, vão lutando por inclusões na lei ou mesmo discriminações positivas. Parece, inclusive, haver uma correlação directa, ou seja, quanto mais discriminações positivas de minorias ou maiorias minorizadas, mais os que detêm o poder se discriminam positivamente também. É claro que tal leva a uma terceira excepção: a da própria Lei Geral que cada vez se aplica a uma franja da população que de facto se torna uma minoria. Uma espécie de curva de Gauss ao contrário!

2.2. A excepção em função do objecto legal. Entramos aqui na área da relação jurídica e no capítulo dos negócios jurídicos, um capítulo imenso. O ‘Interesse Nacional’ ou outros interesses ‘públicos’ legitimam a excepção de uma grande variedade de objectos legais de negócios do direito privado. A tipologia das normas em uso teria que ser feita mas suponho que dava um bom subcapítulo.

2. A excepção na aplicação jurídica das leis. A produção da casuística legal e da excepcionalidade é relativamente complexa pois mesmo no âmbito das leis gerais, cada vez mais se escondem ‘leis-medida’, ‘leis-providência’, ‘leis-provisão’ ou ‘leis-individuais’. É claro que tal só é possível perceber-se se se for um ‘sujeito excepcional’, capaz de contratar advogados excepcionais, peritos na análise de excepções formais ou substanciais.

Finalmente, uma Teoria Geral da Casuística e da Excepção levar-nos-ia a discutir um dos ‘princípios fundamentais do direito português’, enunciado da seguinte forma por Mota Pinto: “O princípio da igualdade perante a lei parece impor necessariamente a inconstitucionalidade de quaisquer normas de direito civil – ou de outros ramos do direito – que não sejam normas gerais. As normas aplicáveis a uma só situação ou a conjunto limitado de situações seriam normas inconstitucionais” (Mota Pinto, 1983: 78-79). Este princípio parece-nos cada vez mais obsoleto!

É claro que, de forma a criar um verdadeiro clima de excepcionalidade legal, há condições morais e sócio-políticas que não podemos descurar. Uma moralidade tipicamente mínima, liberal e, acima de tudo, focalizada na eficácia, por um lado, e a ignorância, a incompetência e, acima de tudo, a intencionalidade da excepcionalidade por outro têm que ser tidas em conta. Mas aí em vez de uma cadeira de Princípios Gerais de Direito teríamos de ter uma cadeira de Antropologia do Direito. Como Giorgio Agamben refere, no seu livro Estado de Excepção, este define-se como a suspensão geral da lei. Ou seja, num sentido jurídico uma ordem ainda existe… ainda que não seja uma ordem jurídica. Não será para aí que caminhamos?

cronicidades1

Discutir o Instituto do Casamento numa Perspectiva Antropológica
Por Paulo Castro Seixas


A legislatura que agora se inaugura vem propor o casamento de pessoas do mesmo sexo. Tal surge no Programa de Governo propondo “Remover as barreiras jurídicas à realização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo” (Programa do Governo). Esta proposta governamental visa a igualdade de pessoas perante a lei independentemente da sua orientação sexual e alguns referem mesmo que é uma questão de direitos humanos.

De facto, a Constituição Portuguesa, inclui no capítulo de Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais, artº 36, alínea 1: “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.”. Ora, o que se propõe o Programa de Governo é a discussão do instituto do casamento, abrindo-o a novas combinações. E tal implica uma discussão antropológica sobre os tipos de casamento de uma forma ampla. Se a discriminação por orientação sexual não é aceitável, tão pouco é aceitável, numa Europa que se quer intercultural, a discriminação em função do vínculo cultural…ou, se quiserem seguir a Constituição à letra, da religião de cada um.

Ora, uma das principais, senão mesmo a principal diferença ao nível planetário no instituto do casamento é a que se estabelece entre casamento monogâmico e casamento poligâmico. Se a monogamia se refere à união de duas pessoas, tipicamente de sexos diferentes mas não necessariamente, a poligamia é a união entre uma pessoa de um sexo com várias de outro sexo, sendo a poligamia poligénica o casamento entre um homem e várias mulheres e a poligamia poliândrica o casamento de um mulher com vários homens.

É relativamente difícil aceder-se a estatísticas certas sobre esta questão. No entanto, no Ethnographic Atlas Codebook , criado a partir do Atlas Etnográfico (1981) de George Peter Murdock, o qual analisou a composição marital em 1231 sociedades, de 1960 a 1980, 186 sociedades eram monogâmicas, 453 tinham poligenia ocasional, 588 tinham poligenia frequente e 7 tinham poliandria (New World Enciclopedia). O maior número de países que aceitam a poligamia encontra-se na África e Sul e Sudeste da Ásia (ver mancha verde no mapa acima).

Normalmente relaciona-se a poligamia com outras culturas e religiões, minoritárias no Ocidente. No entanto a poligamia foi e é aceite entre cristãos também. A Biblia revela vários casos de poligamia e os mormons foram, talvez, os mais conhecidos cristãos a terem aceite a poligamia. No entanto, recentemente a poligamia cristã levou mesmo à criação de um movimento, pela organização Truthbearer (TruthBearer.org) em que se defende o casamento polígamo cristão.

Podemos pensar que o casamento polígamo não se insere na cultura Europeia e que, por isso, não deve ser considerado. Em relação a tal argumento, pode-se dizer que, por um lado, o casamento típico na Europa já não é o monogâmico mas sim o monogâmico sucessivo. Ou, se se quiser, pode-se dizer que somos poligâmicos se considerarmos o tempo de vida de cada um. Por outro lado, a Europa não está fechada ao mundo. A população muçulmana tem aumentado no mundo Ocidental e, com ela, a poligamia. Há referências a cerca de 2.000 homens polígamos no Reino Unido, 15 a 20 mil haréns na Itália, 30.000 haréns na França e 50 a 100.000 polígamos nos Estados Unidos (http://www.danielpipes.org/6022/westerners-welcome-harems). De facto, a poligamia tem tido avanços de facto e de jure em culturas Ocidentais. Em Sydney o Imã Khalil Chami é chamado semanalmente para realizar casamentos polígamos e em Toronto o Imã Aly Hindy já realizou mais de 30 casamentos deste tipo. Ao nível jurídico, pelo menos seis países de cultura ocidental (Holanda, Bélgica, Itália, Reino Unido, Austrália, Canadá), aceitam os casamentos polígamos desde que celebrados em países em que tal casamento seja legal (http://www.danielpipes.org/6022/westerners-welcome-harems). Tal significa que qualquer ocidental pode já casar-se seguindo o instituto polígamo do casamento num país em que tal seja permitido e depois viver num país ocidental sem incorrer em bigamia. Por outro lado, The Brussels Journal noticiou em 2005 o primeiro casamento de um homem com duas mulheres na Holanda, o primeiro país onde o casamento de pessoas do mesmo sexo foi permitido (http://www.brusselsjournal.com/node/301).

Para além dos argumentos políticos relativos à não discriminação segundo o vínculo cultural e de abertura ao mundo por parte da Europa para discutir o instituto do casamento não apenas numa perspectiva de permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo mas também a poligamia, poder-se-ia mesmo acrescentar alguns argumentos de carácter científico. O casamento polígamo está associado a culturas em que a relevância social dos idosos é grande e o acesso a recursos económicos é diminuto, criando uma adaptação sócio-cultural mais adequada para famílias extensas dirigidas por um patriarca ou matriarca. Este tipo de famílias extensas possibilita uma divisão social do trabalho mais resiliente em situação de crise, pois é passível de subsistir com o trabalho por conta doutrem apenas de alguns dos seus membros. Segundo um estudo da Universidade de Sheffield, homens e mulheres de 140 países que praticam a poligamia têm uma esperança de vida maior do que os homens e mulheres de 49 dos países tipicamente monogâmicos (New Scientist, 19 de Agosto de 2008). Apesar da incerteza ser grande, este inicio de século na Europa, e no Ocidente em geral, parece não colocar de parte um cenário em que o instituto polígamo do casamento possa ser bem mais adaptativo do que o instituto monogâmico. Neste sentido ele deve pelo menos ser discutido abertamente e não simplesmente silenciado de forma dogmática.

Assim, num momento em que Portugal se encontra decidido a seguir (como é costume) outros países europeus, seria bom que pudesse também, por uma vez, discutir de forma mais ampla o que está em causa. Assim como não é preciso ser homosexual para aceitar o casamento entre homosexuais, tão pouco é preciso ser polígamo para aceitar que a poligamia seja possível. O problema, aliás, é que a poligamia parece já ser possível para alguns, mesmo que não se saiba ou não se queira, simplesmente, saber.

Portanto, se acham que sim, não deixem de aderir à causa 'Pelo Casamento Polígamo': http://apps.facebook.com/causes/399712